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Luiz Carlos Dias, Professor.


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A contraprova do amor

Era começo do mês de julho quando os cadernos foram deixados sobre a mesa da sala de jantar e as malas com as roupas da viagem esquecidas. Ela olhava fixamente o espelho, tentava entender de onde vinham aquelas dores; dores profundas, enraizadas. Diante dela um corpo nu, gracioso: desejado pelos homens. Os pensamentos vagavam entre um frasco de perfume e outro. O secador de cabelo jogado no chão como se tivesse sido atirado violentamente. A cabeça confusa - atordoada por uma ambição secreta; e do lado esquerdo do corpo, as marcas da agressão, do espancamento. Visível eram os hematomas e, apesar de ainda sentir o sangue quente escorrer pelas pernas, amava-o; amava-o de uma forma inexplicável. Talvez fosse um amor doentio, talvez uma admiração passageira na qual embarcasse sem destino algum.
Assim que ela percebeu o sangue escorrendo pelas pernas, pegou um lenço de papel umedecido e começou a limpar. Delicadamente, retirou da pele castigada o sangue vivo. Quis cheirá-lo, lambê-lo, mas se arrependeu: o cheiro a deixava estranha. Lembrou-se do dia em que o conheceu: um sábado ensolarado, na casa de campo dos avós. Foi instantânea a paixão. Viajara com o objetivo de se livrar das impurezas cotidianas; queria libertar a mente dos pecados carnais - viver uma vida de pastora: deitada na grama, lendo poesia clássica, ouvindo o canto dos pássaros, bebendo o leite quente tirado das vacas. E comendo, comendo muito. Esqueceu da dieta de mais de 15 meses, afinal, os ossos da cintura começavam a aparecer. A última lembrança significativa daquela viagem foi o sentimento avassalador de querer comer. Durante aquelas semanas planejadas, comeu; comeu de tudo mesmo.
A caixinha rosa com flores pintadas não tinha mais lenços. No chão, papéis com o sangue que escorria pelas pernas retilíneas. Deixou-os lá como alguém que não se importa com a bagunça. Na verdade, dentro dela, no âmago, a bagunça era maior, mais destrutiva. Como pode o amor causar tanta dor? Sim, paixão é padecimento, mas não estava apaixonada; estava amando, amando na  sublimação. Sentiu que as dores causadas pelo espancamento aumentavam - mas, já não havia mais vida naquele corpo: o que restou foi um pedaço de carne em estado de decomposição. Enquanto os dedos compridos dedilhavam o corpo estranho, o telefone tocou... tocou... e tocou... Até que a caixa postal soou... Os advogados estavam vindo, na verdade a corpo policial inteiro estava a caminho. Passou pela cabeça dela que fossem os vizinhos os culpados por esse desfecho. Ouviram de certo os gritos, as batidas, o ruído da serra elétrica e ao se incomodarem com os sons, subiram no muro que dividia as casas. Neste muro que funciona igual a uma fronteira separando os países radicais, extremistas, dos chamados pacifistas. Nenhum dos moradores jamais percebera a guerra travada dentro dela, ninguém jamais a cumprimentara. Sua vida era insignificante até aquele momento. De certo modo, às vezes, ela sentia que o melhor estado de espírito estava na reclusão absoluta - no distanciamento dos demais seres humanos e isso, aos poucos, começou a perturbar os vizinhos. Há algum mistério no silêncio; ainda mais quando quem está calada é uma jovem solteira.
O telefone tocou novamente. Ainda estava nua, sentia a dor dilacerar os órgãos, sua cabeça girava, quis chorar. O cheiro de carne podre ficava cada vez mais acentuado. Ela percebeu passos no lado de fora da sua residência. Havia uma movimentação estranha. No quarto, ela apodrecia e desejava isso antes que os vizinhos estranhos entrassem e a entregassem aos policiais, aos advogados. Ela conhecia muito bem o universo do direito. Fechou os olhos e lembrou-se de cinco anos antes... Resolveu que assim que terminasse o ensino médio seria advogada. O seu pai, depois de pressioná-la ao máximo, acabara de realizar seu desejo mais íntimo: ver a filha uma advogada, mesmo que ela não quisesse o mesmo. Ela sempre fora uma menina estudiosa, aplicada; contudo, tinha alma de artista e, apesar dos embates entre o pai (juiz) e o tio (professor universitário na área de literatura), ela acabou cedendo a pressão. Saiu do interior de São Paulo e veio estudar no Largo São Francisco - a Universidade de Direito de São Paulo. Os pais dela ficaram maravilhados. Ela ficou decepcionada consigo mesma por não ter tido forças para negar o processo. Foram cinco anos difíceis - não existiam momentos de descanso. Enfim se formou e começou a trabalhar num escritório de advocacia trabalhista. E mesmo forçada a seguir tal carreira, pensou durante muito tempo, especializar-se em direito criminal assim como seu pai; só que agora estava mais velha, sua vida pertencia-lhe. Que nada! Quando viajou depois de cinco anos, encontrou-o... 
O final da tarde já era perceptível, o sol alaranjado se escondia atrás da rua, o vento balançava as folhas das árvores que ocupavam as duas calçadas. Os hematomas começavam a aparecer em outras partes do corpo; procurou o espelho novamente. Notou que havia um corte no supercílio, provocado por algo pontiagudo e incisivo; sentiu medo. Lá fora, as luzes dos postes começaram a acender e a aglomeração a surgir. Abriu lentamente as cortinas do quarto, olhou os policiais armados, os atirados de elite à distância, o delegado conversando com o chefe do CET (Companhia de Engenharia de Tráfego), a vizinha de cabelos grisalhos da esquerda, as crianças da creche, o vendedor de churros e seu carrinho branco, o cachorro do vizinho da frente latindo para o policial mais baixo. Viu também seu pai, muito mais velho do que da última vez em que o vira, segurando pelo braço magro a mãe. Fechou as cortinas e deitou na cama. Olhou para o teto forrado com estrelinhas cintilantes  e chorou. Tudo estava perdido e não somente ela. Insanamente,  ela o amava, mesmo que isso lhe custasse a sua vida. O quarto foi tomado pelo cheiro de carne estragada.
Ela tinha feito o correto, só havia aquela saída e, por amá-lo tanto, quis aliviar a dor; dela. Rompeu com todos os preconceitos e na noite anterior, quando seu corpo ainda estava livre dos hematomas, pensou...
Foi a janela novamente, tinha de vê-los pela última vez; a noite já era cenário vivo, enquanto os policiais conversavam e as emissoras de televisão estavam na esquina. Ela conhecia a repórter dos noticiários que tratavam especificamente de mostrar ao público a carnificina da cidade. Neste momento, ela era a atriz principal e ganharia um Oscar pela interpretação convincente. Começou a cantar no quarto, cantava a música que sua mãe a ensinara quando ela era uma criança perdida no meio da escuridão dos pesadelos. Parou assim que escutou uma batida forte na porta da sala. Retornou do seu fantástico mundo e o medo preencheu cada célula do seu corpo. Trancou a porta do quarto, pegou o secador do chão e o ligou, recolheu os papéis com o sangue seco. Pensou em escapar, pular a janela. Não o fez, abriu a porta do guarda-roupa, tirou o saco pesado e o colocou na cama. Abriu o zíper e retirou o corpo. Sentiu um furor incrível e por mais estranho que parecesse, ela transou com aquele pedaço de carne morta; aguentou o cheiro, lambeu as orelhas, escorregou os dedos pelo abdome, olhou nos olhos frios e ainda espantados pela crueldade. Beijou os lábios roxos - ela sem dúvida alguma o amava.
Os policiais invadiram a casa, arrombaram a porta do quarto e viram a mulher nua na tentativa de penetrar o corpo inerte. Todos pararam ante a agressividade do ato - algo trágico. Quando os olhos dela apareceram no escuro, via-se o medo em pessoa, via-se uma mulher, de não mais de vinte e cinco anos, tentando manipular o que um dia fora um pênis. Ela lambeu os lábios pela última vez, fechou os olhos e se entregou. A mulher nua, perdida em seus pesadelos, sussurrava uma cantiga enquanto era presa no camburão. Os jornalistas fotografaram tudo. Mas, o que mais assustava as pessoas naquele início de julho era o olhar angelical, por vezes assustador, que persistia no rosto daquela mulher; afinal ela o amava, mesmo que insanamente, amava-o.





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