O FAROL DAS LETRAS |
![]() |
![]() ![]() ![]() Agnaldo Silva Alyne Lourenço Cosacnaify Gloria F. Perez Desencontros Felizes Santiago Nazarian Devaneia-se Rick Riordan Pensamentos da Noite Que tal? Songs By Karina Jücca de Melo ![]() |
Força Estranha
Chovia muito naquela tarde de janeiro; as mudanças climáticas assinalavam como seriam os próximos anos para a humanidade. O bar estava aconchegante, lembrava em muito os pubs ingleses. Mas, não havia tantas pessoas. Somente ela, que, durante horas, chorara, estava sentada agora à mesa de número 6, perto da janela, da qual se podia observar o movimento da calçada. Uma estranha força maquiava as rugas precoces do rosto, os olhos avassaladores estavam quietos, inexpressivos. Na mesa retangular, um Iphone inerte, envolto numa capinha de silicone da cor cereja. Pendurada na cadeira, a bolsa da Louis Vuitton cheia de papéis amassados. Os pés descalços sentiam o frio do piso, muito em função do ar-condicionado. Ela, a mulher de rosto distante, esfregava os dedos pintados com esmalte de primeira linha no chão, sujo; esfregava-os com veemência. Talvez, em busca da terra, do chão batido do passado memorável. A cada imagem retida na mente naufragada em lembranças, pulsava o coração descompassadamente, como um relógio a acordar em nós os segredos. Há horas bebia do mesmo vinho tinto, como se guardasse a última gota para ser compartilhada com outro alguém. O relógio, na parede atrás do balcão, que se estendia por todo o estabelecimento, marcava 17h55. Nada. Resolveu checar o celular, verificar as mensagens: nada. Em algum momento, passou pela cabeça dela que as coisas do universo feminino poderiam ter sido diferentes. Ela poderia ter viajado mais, sido mais atrevida e não se recolhido como uma freira num convento mariano. Só que, em casa de família tradicional, os pais apontam o caminho, ditam as normas e sentenciam o destino dos filhos. Como excelente filha, amarrou-se às escolhas familiares. Agora, estava ela ali, largada num cadeira, num bar, à margem de seus desejos. Ergueu-se, sentou-se, fechou os olhos borrados por causa das lágrimas. Desejou vomitar; durante, as últimas semanas, o enjoo se tornara frequente. Uma hora ou outra, não poderia mais esconder. Tinha medo do que aconteceria no próximo capítulo da sua novela particular. As colegas do trabalho a odiavam, não por sua competência reconhecida e atestada, mas por sua beleza. Os peitos avantajados, o quadril devidamente desenhado, os cabelos encaracolados, coloridos por um castanho claro. Isso tudo posto numa altura adequada aos sonhos masculinos. Assim que ela entrava no escritório, os olhares já a caçavam, o que causava a inveja das outras mulheres, até mesmo as casadas ou desprovidas de sexy-appeal. A noite cruzara a rua em frente ao bar, o celular mudo. O guardanapo manchado pelo batom. As pernas cruzadas. De alguma forma, deveria contar os sentimentos, desabafar. Abriu a bolsa e tirou um envelope branco do fundo. Cuidadosamente, depositou-o sobre a mesa retangular, mas antes, afastou o copo com o vinho tinto. Leu cada linha, verificou cada gráfico. Rapidamente, fechou. Não há como justificar tal acontecimento, e, voltar para a casa dos pais, era algo que não passava por sua cabeça. Ela sentiu o ventre mexer, levou os dedos até ele, acariciando, enquanto os raios punham a cidade grande em alerta máximo, provavelmente, teríamos enchente. Era uma mulher que havia descoberto os prazeres da vida. Sentiu-se atraída por um homem de barba cerrada, olhos azuis, cabelos negros. Por muitos dias, as paredes do hotel testemunharam as promessas de amor, os gemidos ao pé do ouvido, os corpos entrecruzados. Ele ainda teve tempo de dizer alguns versos de uma canção conhecida do Queen: You'll remember when this is blown over, and everything's all by the way / when I grow older, I will be there at your side to remind you how I still love you, I still love you... Ela se encantava, era levada por tais palavras belas, como a vaga ao amanhecer. Enfim, havia saído do convento construído por seus pais. E quando ela sentiu a esperança do futuro a dois partir, viu-se no cais a se despedir. Durante semanas chorou a solidão, quis morrer, parar com tudo e escapar das amarras do destino infeliz. Já que a vida queria aquilo para ela, aos poucos, tentou retornar a rotina. Até que a menstruação parou; era hora de ir ao médico... Naquela tarde de janeiro chuvoso, de mudanças climáticas, as lágrimas, que manchavam o guardanapo de algodão, anunciavam o nascimento de um novo tempo para ela. Seria um novo destino, muito incerto. Bebeu a última gota do vinho tinto, calçou os sapatos, limpou a boca cuidadosamente, pegou a bolsa e sorriu. Foi um sorriso, como dizem as pessoas sábias, de corpo inteiro. Decidiu que o grão de felicidade a crescer no ventre seria sua paixão. Imaginou-o no colo, sorrindo, enquanto as estranhas forças do tempo construíam o amanhã. Ela saiu do bar e se perdeu no meio da multidão com uma canção antiga em sua mente: There is a wait so long / You'll never wait so long / Here comes your man... ![]() |
![]() ![]() |